Thursday, May 10, 2007

O baú das coisas importantes

Tenho uns metros de terreno lá para os lados de Machico. Herança dos avós paternos, da qual o meu pai guardava, religiosamente, num baú de madeira castanha, os documentos da cadastral. Nessa caixa simples, tosca para um olhar distraído, cabiam todas as coisas importantes. Jornais antigos. Cartas que lhe fui escrevendo em letra redonda de adolescente, que hoje lamento não terem sido ditas em vez de escritas. Uma fotografia amarelecida do irmão, e uma infinita montanha de papelada que o tempo ultrapassou.
No baú das coisas importantes, sempre arrumado debaixo da cama, os dias eram congelados em momentos, quase esquecidos, mas estavam sempre disponíveis para nos lembrar que o passado existiu, o presente é reflexo dele e o futuro ganha com essa consciência. Por isso, a carta escrita com letra de adolescente, que falava de um filho que pouco falava com o pai, está agora no meu quarto. No meu baú das coisas importantes. Onde está também o postal escrito pelo amor que me ajudou, e ajuda, a ultrapassar a dor, a perda, e a viver o presente, pensando no futuro. Aquele que eu chamo de Scarlett, mas tem o nome de princesa hebraica, e respira para além da minha caixa de madeira trabalhada. No meu baú das coisas importantes, estão também, agora, os documentos dos terrenos de Machico. Onde a terra íngreme é a casa de pinheiros centenários, giestas em flor e feiteiras rasas. Não mora lá mais ninguém. O valor sentimental não é comparável à carta escrita com letra de adolescente. Até para o meu pai, que um dia, meio a sério, meio a brincar, disse-me: “Bom era sermos expropriados”. E era bom. Receber o preço “justo” que o Governo Regional paga e os tribunais “dizem” ser certo. Mas isto sou eu a falar. Que já nem sei onde ficam aqueles metros de terra. Que nunca plantei lá nada, nem pretendo construir. Que não brinquei por entre os pinheiros e giestas. Que não dediquei uma vida aquele espaço, nem o comprei por um preço mais “justo” do que o Governo Regional vai pagando, enquanto vai construindo uma ‘Madeira Nova’, esquecida do baú das coisas importantes, que o passado contém. Porque às vezes, um metro de terreno vale mais do que um simples metro de terreno.

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