Sunday, March 04, 2007

O medo é incorpóreo. Fumo invisível que percorre as vísceras da alma, expandindo-se pela carne, num sufoco liso. Ondulado, que chega sem ser anunciado. O riso risível do diabo, sacudindo o corpo. Libertando lágrimas de arrependimento. De sofrimento. De culpa. O sal não desinfecta o olhar queimado pela visão vaga do inferno. Toldado pela palavra desiludida. Certa. Cruelmente certa. Que ecoa em mim como um tambor de guerra, chamando o homem para a manhã incerta. Para a despedida. Para a morte do dia seguinte. Para a batalha sem vencedores. Só vencidos. Derrotados. Guerreiros adormecidos caminhando pelo campo de espinhos. Empunhando espada de papel e chicotes de cordel. Temerosos. Inofensivos. Estupidamente pacíficos. Todos. Avançando pelo pesadelo molhado, arrastando os pés sincronizados em direcção ao inimigo que não compreendem. Que não querem compreender. Vestindo ódio induzido, já esquecido de causas e razões.
Estou no meio deles. Os meus pés são os deles. Trago na mão despida as unhas enferrujadas pelo sal. Os dedos descarnados pela dor. A tiracolo, num cinto de pele de criança, um punhal elástico em tons cinzentos. Na cabeça mil e um tormentos, e avanço com lama vermelha pelo pescoço.
Não te vejo.
Procuro-te tentando não tropeçar. Procurando não cair desamparado. Não ser engolido pelo batalhão que continua cego a subir a montanha.
Falta pouco para o cume.
Para as fileiras se cerrarem e carregarem sobre o inimigo espelhado. Sobre o reflexo monocromático do homem, que aguarda do outro lado o momento. Em fileira simétrica.
O sentimento não mora aqui. Neste desfiladeiro de papoilas assombradas. Sob o céu verde da raiva surda, muda, suja pela história, só o desalento respira.
O barulho é ensurdecedor.
Aterrador.
Não avanço. Nada existe do outro lado, para além do reflexo de mim mesmo.
Deserto da guerra, e a tua imagem aterra ao meu lado.
Despes-me das armas. Dos preconceitos. Do pré-concebido e de tudo o que eu julgava sabido.
Abraças-me.
“Vai ficar tudo bem”, dizes com um gesto, que fragmenta em poesia o universo.
O campo não era real.
Nada é real.
Tu és.

1 Comments:

Blogger José Leite said...

Um murmúrio de sobriedade e de suculenta ironia...

6:01 PM  

Post a Comment

<< Home

Locations of visitors to this page Website counter